”Todo camburão tem um pouco de navio negreiro” (O Rappa)
MC Poze do Rodo foi preso sob a acusação de apologia ao crime e associação criminosa — supostamente por conta das letras de suas músicas. O que está em jogo aqui não é se suas músicas devem ou não ser analisadas à luz da legislação, mas o tratamento brutalmente desigual que o Estado brasileiro e a grande mídia aplicam sobre corpos negros periféricos.
Em minha formação em jornalismo, li Showrnalismo: a notícia como espetáculo, do jornalista e professor José Arbex Jr. Ali, ele denuncia como a mídia transforma fatos em narrativas espetaculares, encobrindo complexidades, descontextualizando falas e promovendo julgamentos morais. O caso de MC Poze é exemplo clássico dessa engrenagem perversa.
A declaração de Poze — de que é “da área do Comando Vermelho” — foi imediatamente distorcida. Ele se referia ao território onde nasceu e cresceu, uma favela dominada por essa facção. Não era uma confissão de envolvimento com o crime, mas um dado sociogeográfico. Ainda assim, a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro divulgou que ele “confirmou” ser membro da organização criminosa. A mídia tradicional, sem questionar a fonte, repetiu o enunciado como se fosse verdade absoluta.
Enquanto isso, casos de violência extrema contra o próprio Estado são tratados com luvas de pelica. Em 2022, Roberto Jefferson — ex-deputado federal, homem branco e rico — lançou granadas e disparou com armas de fogo contra agentes da Polícia Federal. Mesmo assim, não foi algemado ao ser preso. Nenhuma nota oficial o classificou como “terrorista” ou membro de milícia. A imprensa, embora tenha noticiado o caso com destaque, não o transformou em espetáculo.
O contraste é evidente e revelador. A seletividade penal e midiática se ancora no racismo estrutural. O corpo negro é sempre visto com suspeita, como ameaça. Quando esse corpo canta sobre sua realidade — marcada por violência, ausência do Estado e resistências —, ele é acusado de glorificar o crime. Quando esse corpo se torna símbolo de ascensão social a partir da favela, vira alvo de perseguição.
O funk, assim como o rap, sempre foi tratado como inimigo público. Não pelo seu conteúdo em si, mas porque dá voz a quem o sistema tenta calar. A criminalização de MC Poze é a criminalização da juventude preta e pobre. É a tentativa de dizer: “Você pode até fazer sucesso, mas nunca se esqueça de onde veio — e do seu lugar.”
Por isso, as manifestações de apoio ao cantor — com motociatas de entregadores, mototaxistas e artistas do funk — são mais do que atos de solidariedade. São gritos de revolta contra um sistema que aprisiona corpos antes mesmo do crime, que acusa antes de investigar e que julga com base na cor da pele.
O Brasil precisa, urgentemente, repensar o papel da mídia, da Justiça e das instituições. Enquanto persistir esse modelo de espetáculo penal, o jornalismo deixará de informar para performar. E a democracia continuará sendo um privilégio de poucos — brancos, ricos e blindados pela impunidade.
Por Vinícius Rêgo Pessoa
Jornalista – JP 11432/MG
Pós-graduado (Lato Sensu) Gestão de Políticas Sociais (PUC-MG)